O intuito é fazer uma exposição básica a respeito de aspectos fundamentais atinentes à problemática do voto distrital, abrindo algumas linhas de orientação para discussões.
O instituto do voto distrital não é estranho ao ordenamento jurídico brasileiro. A Emenda Constitucional n° 22, de 29 de junho de 1982, o introduziu no texto da Constituição brasileira, então vigente, a Constituição de 1967, na forma da Emenda n° 1, de 1969. Para isso, aquela emenda 22 adicionou ao Artigo 148 um parágrafo único com a seguinte redação: "Igualmente, na forma que a lei estabelecer, os deputados federais e estaduais serão eleitos pelo sistema distrital misto, majoritário e proporcional". Mas, como a lei nada estabeleceu, o dispositivo ficou apenas no texto jurídico. Jamais foi praticado no contexto político. Até que foi revogado pela Emenda Constitucional n° 25, de 1985. Porém, além de não ser estranha, também não é recente a presença do voto distrital do mundo jurídico-político brasileiro.
Com efeito, já no Segundo Reinado, o Decreto Legislativo 842, a chamada Lei dos Círculos, institui o sistema de votação por distritos ou círculos eleitorais, que foi abolido depois, em 1875, pela chamada Lei do Terço. Mais tarde, em 1881, o sistema distrital foi restabelecido pela chamada Lei Saraiva ou Lei do Censo. O sistema de distritos ou círculos eleitorais perpassou pela proclamação da República, perdurou durante a República Velha e veio a ser extinto somente pelo Código Eleitoral de 1932.
Durante a Primeira República nós tivemos também a Lei Rosa e Silva, que previa de sua parte a subdivisão dos Estados em distritos, preconizando a eleição de cinco deputados por distrito. E no seu parágrafo 1° do Artigo 58 grifava: "Os Estados que derem sete deputados, ou menos, constituirão um só distrito eleitoral".
Ainda devem ser registradas proposituras mais recentes, acerca do voto distrital. Junto com a constitucionalista Mônica Herman Salem Caggiano vale destacar dois projetos de lei, sem menosprezar os demais. A saber: o projeto do ministro Edgard Costa, de 1958, bastante engenhoso, embora conseqüentemente muito complicado, prevendo uma espécie de voto distrital, mas estranhamente pelo sistema proporcional; e o projeto do então deputado André Franco Montoro, que pretendeu em 1964 trazer para o Brasil o sistema distrital misto, praticado na Alemanha.
Eis aí a experiência brasileira conseguida ou projetada na legislação constitucional e infraconstitucional em torno do voto distrital. Em termos constitucionais o voto distrital vigorou apenas naquele intervalo entre as citadas Emendas Constitucionais de n°.s 22 e 25.
Sempre o voto distrital tem importância doutrinária e transforma-se num palpitante tema de doutrina. O presente trabalho o abordará em três vertentes principais. Isso, porque doutrinariamente o instituto do voto distrital se insere dentro dos sistemas eleitorais. A questão do voto distrital está inserida dentro da questão dos sistemas eleitorais. E, por outro lado, entre as suas muitas conseqüências, o voto distrital repercute diretamente sobre dois temas também palpitantes do direito e da política, a saber: os partidos políticos e, no final, a própria democracia. Por isso, primeiramente convém analisar as relações do voto distrital com os sistemas eleitorais e, depois, a relação entre voto distrital e partidos políticos e, por fim, a relação entre voto distrital e democracia.
Primeiramente, voto distrital e sistemas eleitorais. Existem dois sistemas eleitorais básicos: o majoritário e o proporcional. Muitos aventam diversas formulações mistas, consignando até mesmo um terceiro tipo, como faz Maurice Duverger, constituído pelos chamados sistemas eleitorais mistos. Mas, bem analisando e aprofundando a questão, um sistema eleitoral misto, como o próprio nome diz, não passa de uma combinação dos dois sistemas básicos: o majoritário e o proporcional. Portanto, ficando na base, examinem-se apenas os contornos básicos dos dois sistemas fundamentais: o majoritário e o proporcional.
O sistema majoritário pode ser simples ou ser de dois turnos.
No primeiro tipo (sistema simples: um só turno), o candidato eleito é o que obtém maior número de votos, não importando qual seja o total de votos obtidos pelos seus adversários. É o que se chama de maioria simples ou, mesmo, maioria relativa.
Por oportuno, convém esclarecer o conceito de maioria simples. Como insiste Marcel Prélot, maioria simples é mais da metade e não, como afirma Duverger, metade mais um. Esse conceito hoje já está assentado definitivamente na jurisprudência brasileira pelo Supremo Tribunal Federal, valendo para todos os colegiados no âmbito dos três Poderes. Não mais se fala em metade mais um. Fala-se sempre em mais da metade ou o número inteiro imediatamente superior à metade. Isso, porque muitas vezes se tem mais da metade, mas, em não se tendo a metade mais um, deve-se acrescentar mais um e meio, o que distorce realmente a conceituação da maioria. Assim, a maioria de 15, se fosse metade mais um, seria 7,5 + 1 = 8,5 = 9. Porém, em verdade, aí a maioria superior a 7,5 é realmente 8 e não 9. E assim ocorrerá sempre que a base for ímpar.
Já no segundo tipo (sistema composto de dois turnos), o ganha no primeiro ou no segundo turno aquele que alcançar a maioria absoluta dos votos, ou seja, mais da metade dos votos havidos.
Historicamente, a exigência de maioria absoluta tem origem no direito eclesiástico. Veio do Concílio de Latrão e foi praticada nas votações nos capítulos dos cônegos. Também se praticou a maioria absoluta para a eleição dos deputados aos Estados Gerais. Também foi aplicada na Restauração, na Monarquia de Julho, na França. Depois, o sistema foi abolido pela Segunda República, restabelecido pelo Segundo Império e, além da França, quase toda a Europa seguiu esse modelo. Os franceses dizem: a França foi imitada pela Europa e adotou o sistema majoritário, com exigência de maioria absoluta, praticando-se um turno ou dois turnos.
Além desse aspecto de turnos e de maioria, os sistemas eleitorais também podem ser apreciados sob outro aspecto: o escrutínio de lista ou escrutínio uninominal. Diz-se uninominal o sistema em que cada circunscrição eleitoral elege um só candidato. Plurinominal é aquele em que cada circunscrição elege vários candidatos, agrupados por listas, o que gerou o cognome de sistema de lista ou escrutínio de lista. O sistema majoritário pode funcionar tanto com o escrutínio uninominal, quanto com escrutínio plurinominal, com sistema de listas.
Adverte Duverger, porém, que há grande diferença, conforme seja lista bloqueada, em que o eleitor deve votar na lista inteira, ou seja lista aberta, podendo o eleitor compor sua lista e fazer aquilo que os franceses chamam de panachage.
Na França, para as eleições legislativas, adota-se o sistema uninominal, no âmbito dos arrondissements, e o sistema de lista, no âmbito dos departamentos. No Brasil atual, a Constituição de 1988 aplica o sistema majoritário uninominal com exigência de maioria absoluta e possibilidade de um segundo turno para eleição do presidente da República, dos governadores dos Estados e do Distrito Federal e dos prefeitos dos municípios com mais de 200 mil eleitores. Tudo, conforme disposto nos artigos pertinentes da Constituição de 1988.
Agora, algumas linhas a respeito do sistema proporcional. Até o fim do século XIX a questão dos sistemas eleitorais não suscitava maior debate. Na Europa e na América, de início se adotou o sistema majoritário, sem maiores considerações. É a famosa "democracia da maioria". Mas, no final do século passado, os doutrinadores, sempre preocupados em inovar, conceberam uma grande novidade: o sistema proporcional, que é mais autêntico na representação de todas as facções da opinião pública. Esse sistema foi logo adotado na Bélgica e passou a ser usado em vários países da Europa, depois contaminando outros continentes.
O objeto do sistema proporcional é assegurar às opiniões diversas, entre as quais se repartem os eleitores, um número de cadeiras correspondente às suas forças respectivas. Costuma-se compará-lo ao espelho ou ao mapa fiel em que se reflete e projeta a imagem do país: é o resumo das tendências em que se divide o povo. Realmente, se a característica dos sistemas majoritários é não assegurar senão uma representação indireta e aproximada das maiorias, já o princípio básico do sistema proporcional é que ele garante a representação das minorias em cada circunscrição. Contudo, para que o sistema proporcional funcione, deve-se estabelecer um mecanismo razoavelmente complexo, de aplicação nem sempre fácil, sendo suscitados diversos problemas, entre eles o da determinação do número de candidatos eleitos em cada lista apresentada, bem como o da destinação dos chamados restos. Existem diversas fórmulas para solucionar ambos os problemas. Não vem ao caso debatê-las agora.
Agora, uma vez explicados os dois grandes sistemas básicos, o que cumpre é fazer um relacionamento entre voto distrital e sistema eleitoral. O escrutínio uninominal pressupõe uma circunscrição eleitoral pequena para as eleições legislativas, ao passo que o plurinominal, sistema de lista, se destina a grandes circunscrições. Desse princípio decorre a regra que define o voto distrital, a saber: em cada distrito se elege um só nome. Isso, porque cada distrito é uma pequena circunscrição, que pode ser definida por variados critérios, mais ou menos artificiais, de base geográfica, administrativa, política, etc. Aí estão as duas notas características, definidoras de voto distrital: a primeira é a eleição uninominal e a segunda, a circunscrição exígua.
Por definição, o voto distrital implica necessariamente o sistema majoritário uninominal. O voto distrital seria totalmente distorcido, se fosse combinado com o sistema proporcional. Essas hipóteses distorcidas podem ser imaginadas, mas não devem ser praticadas, pois sua realização não se faria sem provocar a disfunção da representação. Por exemplo, em decorrência da pluralidade de distritos, poder-se-ia cair num congestionamento da representação, com prejuízo da sua funcionalidade e da agilidade. Por outro lado, alargar a circunscrição para diminuir o número de distritos seria sair do espaço do voto distrital e cair no voto por estado ou por região. De modo que, dadas as características definidoras do voto distrital, necessariamente ele tem de ser uninominal e a circunscrição tem de ser exígua. Se não for assim, o voto não será distrital.
Em virtude de sua própria natureza, conforme se acabou de definir, o voto distrital padece do mesmo mal que afeta a todos os sistemas majoritários, qual seja, as minorias vencidas ficam à míngua de uma representação própria e específica. O voto distrital significa, assim, retorno a uma superada concepção do liberalismo clássico: o eleitorado-função. Como salienta Mônica Caggiano, tal prática de um eleitorado-função, obrigado a votar meramente para cumprir um dever para com o Estado, tende a incidir na corrupção. Por outro lado, o próprio candidato eleito muitas vezes é levado a defender os interesses daqueles que o elegeram, menosprezando os interesses da minoria vencida, a qual fica à míngua de representação e de proteção.
Por último, voto distrital e partidos políticos. Existem três situações políticas básicas de um Estado quanto ao número de partidos políticos existentes na sua ordem jurídica. É o que Duverger chama de "sistemas de partidos", que basicamente são três: o unipartidarismo, ou partido único, o bipartidarismo, dois partidos, e, quando há mais de dois, o pluripartidarismo ou multipartidarismo. A existência de um só partido deve ser colocada de lado, sem preocupar o estudo, porque descaracteriza a democracia e implica eleições que podem, na maioria das vezes, não ter nem sequer o caráter de uma verdadeira eleição. Fique-se, portanto, com o bipartidarismo e o pluripartidarismo.
A opção ou a existência de dois, três, quatro ou mais partidos num determinado estado depende de fatores nacionais, históricos e sociais, de variadas ordens, porém não deixa de depender também de um fator técnico-institucional, qual seja, o sistema eleitoral. Não se está dizendo que o sistema de partidos depende unicamente do sistema eleitoral. Está-se dizendo que depende também.
Analisando a influência do sistema eleitoral sobre o sistema de partidos, Maurice Duverger formulou as suas célebres três leis. É interessante enunciar e fixar essas três leis, porque elas representam uma excelente contribuição do grande jurista e sociólogo francês à teoria dos partidos políticos e do relacionamento dos partidos com o sistema eleitoral. A primeira lei diz: a representação proporcional tende à formação de partidos múltiplos e independentes. A segunda lei diz: o escrutínio majoritário em dois turnos tende à formação de partidos múltiplos e dependentes. A terceira lei fala do escrutínio majoritário em um só turno, afirmando que tende ao dualismo partidário, à formação e aglomeração em dois partidos.
Roger-Gérard Schwartzenberg previne que não deseja encampar críticas contra as leis de Duverger, mas ele também pondera com muita clareza que essas leis que Duverger formula não podem ser aplicadas automaticamente e nem isoladamente, porque esse fator técnico-institucional atua conjuntamente com fatores sociais, históricos, ideológicos, formando um complexo de fatores dentro dos quais muitas vezes é difícil definir-se qual é o fator predominante, que até pode variar de tempos em tempos, dentro da mesma nação, e variar muito de nação para nação. Porém, o próprio Schwartzenberg reconhece que as três leis tendenciais e fundamentais propostas por Duverger merecem crédito.
Agora, pela análise da correlação entre voto distrital e essas três leis de Duverger, chega-se a conclusões interessantes, que devem ser tomadas como propostas de polêmica, para atiçar o debate. Conclui-se que, por ser um sistema majoritário, o voto distrital não favorece a formação de partidos independentes. Se for praticado em dois turnos, dentro de um sistema majoritário, o voto distrital poderá levar à formação de partidos múltiplos, porém dependentes. Continue-se aplicando as três leis de Duverger. Se o voto distrital for processado em um só turno, conforme o modelo anglo-saxão, praticado na Inglaterra e nos Estados Unidos, ele poderá conduzir a um fechado bipartidarismo, como ocorre nesses dois países há mais de cem anos.
Uma conclusão, quiçá, pode-se tirar: em qualquer hipótese, aceitando-se as leis tendenciais de Duverger, parece que o voto distrital não se constituirá em fator de fortalecimento do pluralismo partidário, que é a mola mestra do pluralismo político, tanto que o artigo 1°, inciso V, da Constituição de 1988, o insere entre os fundamentos da República Federativa do Brasil. Pergunta-se diante dessa argumentação: seria o voto distrital inconstitucional? Será que para implantar o voto distrital será preciso suprimir o inciso V do Artigo 1º, dada a incompatibilidade entre o voto distrital e pluralismo político? Ficam essas perguntas para a doutrina e a história responderem. De qualquer modo, o presente estudo é tentado a concluir que o voto distrital, segundo as leis de Duverger, não tende à melhor sintonia com o pluralismo de que a Constituição pretende revestir a República do Brasil.
Por último, voto distrital e democracia. Apenas há que frisar dois aspectos. De um lado, alguns dizem que o voto distrital favorece a coesão e o diálogo entre eleitores e eleitos, permitindo até mesmo a cobrança muito rigorosa dos eleitores sobre o comportamento dos eleitos. O grande elogio ao voto distrital é: ele estreita o diálogo e a cobrança democrática entre os eleitores e os eleitos. Mas, por outro lado, não são poucos os que advertem sobre o alto potencial corruptivo do voto distrital. Esse perigo aumenta nos países em desenvolvimento, nos quais a falta de maturidade cultural e a pobreza podem acumular-se com o apequenamento das circunscrições eleitorais para facilitar o mercadejamento de votos, bem como o desenvolvimento de um coronelismo distrital, reavivando procedimentos políticos, já em extinção, baseados no poder econômico ou no temor reverencial. Nesse sentido são ilustrativos certos exemplos recentes de candidatos que se mudaram para circunscrições eleitorais mais remotas, menores, de menor maturidade cultural ou estabilidade econômica, buscando ganhar ali eleições majoritárias ou até mesmo proporcionais com uma vitória fácil que não teriam na sua terra de origem ou noutra terra mais desenvolvida, mais amadurecida e mais ampla. Tem ocorrido que alguém transfira seu domicílio eleitoral para outro Estado remoto da Federação, pretendendo eleger-se por lá. Evidentemente, o poder econômico facilita esses engodos. Por isso mesmo, é que até os adeptos do voto distrital não deixam de ad cautelam propô-lo sob uma forma mista. Não se chega a ter a coragem de propor um voto distrital integral: sempre se fala em voto distrital misto, reservando pelo menos a metade para a mantença do regime proporcional.
A propósito, seja bem lembrada uma observação de Manuel Gonçalves Ferreira Filho. Em seus comentários à Constituição de 1969, quando passa pelo artigo 148, § 1º, não assume posição nem a favor nem contra o voto distrital. Ele comenta imparcialmente. Porém, não deixa de colocar algumas reticências pelas quais suspende indagações a respeito da matéria. Diz o seguinte: "observe-se que a aplicação do sistema distrital misto é mais razoável nas eleições para vereadores do município de São Paulo, que tem milhões de habitantes e de eleitores, do que no Estado do Acre, que conta apenas com 300 mil habitantes..." Ele escreveu isso em 1984.
Em síntese, exatamente para aguçar um contraditório, tragam-se à consideração duas conclusões. Juridicamente parece que, aceitas as leis de Duverger, o voto distrital não é a solução mais adequada para chegar ao pluritarismo político-partidário e manter uma república pluritarista. Ele tende mais ao bipartidarismo ou a um multipartidarismo fracionado e dependente, provocando alianças, como já tem acontecido em eleições presidenciais majoritárias em dois turnos, realizadas no Brasil ou em países vizinhos, nas quais o Presidente eleito, ou simplesmente não tem partido em que esteja tradicionalmente inscrito e atuante, ou então o seu partido perde algo de suas tradições ou de sua ideologia para ganhar a eleição. Em ambos os casos, falece a autenticidade.
Politicamente, tendo em consideração o atual estágio de desenvolvimento econômico-social e político-cultural desta república brasileira, sobretudo os graves problemas econômicos e sociais por que ela passa, sem grande perspectiva de sair e com muita perspectiva de neles afundar mais, talvez o voto distrital não venha a contribuir para o aprimoramento da democracia representativa no Brasil. Ao contrário, como já se advertiu, e são muitos os que advertem, poderá propiciar, sobretudo em regiões mais remotas, menos favorecidas pela sorte econômica, o recrudescimento de práticas de corrupção e de desvios eleitorais, quem sabe reavivando um verdadeiro coronelismo distrital; práticas essas que, apesar de todos os pesares, já estão sendo superadas pela evolução histórica do Brasil.