A tese de doutoramento de José Joaquim Gomes Canotilho na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra intitulou-se “Constituição dirigente e vinculação do legislador: contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas”. Nessa tese, ele defendeu uma proposta de normativismo revolucionário, ou seja, a possibilidade de construir um Estado socialista dirigindo-se nesse sentido as normas da Constituição. Aprovada e publicada, a tese teve ampla repercussão, inclusive no Brasil. Sobreveio a segunda edição. Mas, com um surpreendente prefácio. Na conclusão desse prefácio, Canotilho – após declarar que “a Constituição dirigente está morta se o dirigismo constitucional for entendido como normativismo constitucional revolucionário” – ressalvou que “alguma coisa ficou, porém, da programaticidade constitucional”, acrescentando que “os textos constitucionais devem estabelecer as premissas materiais fundantes das políticas públicas num Estado e numa sociedade que se pretendem continuar a chamar de direito, democráticos e sociais”. (Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador: contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas. Coimbra: Coimbra Editora, 2001. Prefácio, p. XIX s.). Essa ressalva de Canotilho instiga a perguntar: o que são políticas públicas?
Políticas públicas são diretrizes de interesse público que enformam programas de ação governamental segundo objetivos a serem alcançados e que, para esse fim, condicionam a conduta dos agentes estatais. Rodolfo de Camargo Mancuso identifica políticas públicas com condutas administrativas, de modo imediato. Define: “a política pública pode ser considerada como a conduta comissiva ou omissiva da Administração Pública, em sentido largo, voltada à consecução de programa ou meta previstos em norma constitucional ou legal, sujeitando-se ao controle jurisdicional amplo e exauriente, especialmente no tocante à eficiência dos meios empregados e à avaliação dos resultados alcançados” (cf. Controle judicial das chamadas políticas públicas. In: MILARÉ, Edis, Coordenador. Ação civil pública: Lei 7.347/1985 – 15 anos. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2001. p. 730). Outros identificam políticas públicas com programas de governo, como se infere da seguinte afirmação de Fábio Comparato: “o critério classificatório das funções e, portanto, dos Poderes estatais só pode ser o das políticas públicas ou programas de ação governamental” (Grifei. Cf. Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade de políticas públicas. RT 737/15-17, mar. 1997.). Mas entendo que as políticas públicas são antes diretrizes de programas e de condutas, do que os programas e as condutas propriamente ditos, por elas dirigidos.
Essas diretrizes são setorizadas tematicamente – política de educação, política de saúde, política de transportes, política econômica, política ambiental, etc. – e respondem ou mesmo correspondem a direitos sociais. Mas, quem as fixa? Dado que elas instruem programas governamentais, quem as fixa é o Governo, ou o Poder Público, entendido por esses termos o Poder Executivo como gestor maior dos negócios públicos, que devem ser geridos em função do interesse público. Anote-se que o interesse do Governo ou da Administração nem sempre corresponde ao interesse público, cujo norte é o bem comum. Satisfazer a uma plataforma política do governante, distanciada do bem comum, não é atender ao interesse público.
Por isso, a fixação das políticas públicas não pode ser arbitrária, sobretudo em um Estado Democrático de Direito, cujo governo deve ater-se ao que lhe permite ou impõe a Constituição como expressão superior do interesse público, seja em sentido estrito (interesse da administração pública), seja em sentido amplo (interesse coletivo ou social). Daí, por que Canotilho diz que os textos constitucionais devem fixar as premissas materiais fundantes – ou seja, as matérias fundamentais – das políticas públicas.
Essa fixação constitucional se faz mediante normas programáticas. As normas jurídicas podem ser princípios (mais gerais) ou regras (mais específicas) que diferem entre si nos termos doutrinados por Robert Alexy (cf. Teoria de los derechos fundamentales. Trad. Ernesto Garzón Valdés. Madri: Centro de Estúdios Constitucionales, 1997. p. 83 s.) e Ronald Dwordin (cf. Taking rights seriously. 16 ed. Cambrigde, Massachussetts: Harvard University Press, 1997. p. 22 s. Cf. também edição brasileira: Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 35 s.). É mais adequado que as políticas públicas sejam objeto de princípios constitucionais programáticos, a serem detalhados por regras estabelecidas pela legislação infraconstitucional. Todavia, mesmo antes do seu regramento infraconstitucional, esses princípios programáticos – como normas programáticas – já têm eficácia no sentido de substancialmente (1) revogar os atos normativos anteriores com eles colidentes e (2) fundar a inconstitucionalidade de atos normativos posteriores, também se com eles incompatíveis, bem como processualmente (3) assegurar direito de ação judicial contra regras ou atos que os atinjam em sentido contrário ao constitucional e (4) justificar decisões jurisdicionais orientadas no mesmo sentido que eles, à vista dos interesses constitucionais por eles protegidos. (Cf. BARROSO, Luís Roberto. Temas de direito constitucional. Vol. I. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 317).
Esses quatro parâmetros – dois substanciais e dois processuais – podem e devem pautar a atuação do Poder Judiciário em relação às políticas públicas expressas nos princípios constitucionais programáticos. Todavia, ainda há outros parâmetros, dos quais alguns são comentados a seguir.
Um deles é a possibilidade econômica de o Estado prestar os direitos sociais. Os direitos sociais prestacionais exigem a intervenção do Poder Público na ordem econômica, social e cultural, em determinados setores, em busca da real igualdade, bem enunciada por Ruy Barbosa, na Oração aos moços, discurso aos formandos da Faculdade de Direito de São Paulo, em 1923, já desiludido pela impossibilidade de vencer o coronelismo. Disse Ruy: “A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam.”Aí “é que se acha a verdadeira lei da igualdade”. E arrematou: “tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real” (cf. ORAÇÃO AOS MOÇOS. 18 ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. p. 55). Mas essa intervenção do Estado para superar mediante direitos sociais as desigualdades reais tem um custo econômico-financeiro. Assim, a íntima relação existente entre as políticas públicas e os direitos sociais condiciona a atuação do Estado a prestações diretamente vinculadas à destinação dos bens públicos e à disponibilidade orçamentária. Dessa forma, as políticas públicas e, mais particularmente, os direitos sociais que elas enformam têm uma dimensão – um peso – economicamente relevante para o Estado.
O mesmo não ocorre com os direitos individuais, pois são delineados pela omissão estatal e não por sua atuação. O objeto de sua proteção pode ser assegurado juridicamente, sem que haja maior necessidade de recursos econômicos para garantir a efetividade desses direitos. Evidentemente existe um gasto público com recursos materiais e humanos necessários para prover à garantia dos direitos individuais. E esse gasto, porém, difere qualitativa e quantitativamente do gasto com as políticas públicas, o qual pelo seu montante limita a proteção dos direitos sociais de cunho prestacional, sobretudo em países subdesenvolvidos. Assim, o gasto público é conditio sine qua non da eficácia das políticas públicas, pois a efetiva realização dos programas por elas enformados não é possível sem alocação de recursos econômicos e humanos estatais, ainda que o Judiciário imponha ao Poder Público a satisfação de determinadas prestações reclamadas em juízo. Dessa forma, apresenta-se um problema: a dependência das políticas públicas em relação à real existência dos meios para cumpri-las, mesmo se vierem a tornar-se obrigação judicialmente estabelecida. A efetividade das políticas públicas resulta dependente da atual disponibilidade de recursos por parte do destinatário da pretensão: o Estado. Esse é um limite fático, que precisa ser ponderado.
Como destinatário geral, o Poder Público tem capacidade jurídica de empregar os recursos realmente existentes para as políticas públicas. Mas, na concreção da destinação, ainda que o Poder Público tenha competência jurídico-constitucional para prestar o direito, a deficiência de seus recursos econômicos gera a impossibilidade real de cumprir as prestações conforme ordenadas a partir da Constituição: ad impossibilia nemo tenetur (= ninguém é obrigado a coisas impossíveis). Não se pode obrigar a administração pública a fazer o que lhe seja impossível fazer. No entanto, deve o juiz ponderar criteriosamente essa impossibilidade. Por exemplo, é inadmissível o desvio de recursos públicos para políticas de governo, plataformas de cunho evidente ou sub-repticiamente eleitoral, em detrimento da execução das políticas públicas de real interesse coletivo.
Em virtude desses aspectos, as políticas públicas passam a se sustentar sob o que se denominou reserva do possível, que compreende a possibilidade e o poder de disposição econômica do Poder Público. Essa dependência econômica gera a necessidade, cada vez mais presente, de fiscalização constante sobre a aplicação do erário público. Pois, a Constituição não determina os critérios de destinação da disposição econômica do Poder Público, deixando a cargo de órgãos políticos, precipuamente do Poder Legislativo, na Lei Orçamentária, essa determinação. Como ensina José Joaquim Gomes Canotilho, a realização dos direitos sociais, assim como de todos os direitos fundamentais, é “um importante problema de competência constitucional: ao legislador compete, dentro das reservas orçamentais, dos planos económicos e financeiros, das condições sociais e económicas do país, garantir as prestações integradoras dos direitos sociais, económicos e culturais”. (Grifo do autor. Cf. Constituição dirigente e vinculação do legislador: contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas. Coimbra: Coimbra Editora, 2001. p. 369).
Esse parâmetro econômico tem repercussão no campo processual, ensejando maior efetividade às ações individuais do que às coletivas, na busca da tutela de determinado direito social não prestado conforme as políticas públicas. Isso, por causa da maior possibilidade econômica que o Poder Público tem de garantir a prestação de um determinado direito social a um cidadão singularmente considerado, sendo que igual efetividade é mais difícil de obter na garantia abstrata, geral e coletiva – para todos os cidadãos, difusamente – da prestação desse mesmo direito social. O que ocorre independentemente de ser o direito social contemplado ou não em alguma política pública. Dessarte, importantes institutos, como a ação civil pública, perdem ou, pelo menos, vêem diminuída a sua efetividade em face do problema da reserva do possível.
Outro parâmetro aplicável é o da inércia do juiz: nemo judex sine auctore ou nulla jurisdictio sine actione (= ninguém é juiz sem autor ou nenhuma jurisdição sem ação). Vale dizer: o Poder Judiciário só pode atuar mediante provocação de um autor que proponha determinação ação e suscite a jurisdição. Há ações especiais idôneas para implementar políticas públicas: ação direta de inconstitucionalidade, sobretudo por omissão; ação declaratória de inconstitucionalidade; argüição de descumprimento de preceito fundamental; ação civil pública; ação popular; e outras, como o mandado de segurança individual e coletivo e o mandado de injunção. Mas também a própria ação ordinária se presta à implementação de políticas públicas.
Essa implementação pode ter alcance geral (por exemplo, uma ação civil pública para determinar que o Poder Público atue suprindo deficiências ou impedindo abusos em relação à política de saúde pública) ou singular (por exemplo, uma ação ordinária de obrigação de fazer proposta por um particular contra o Poder Público em busca da tutela ou de uma prestação necessária à efetivação do seu direito social à saúde).
Outro parâmetro é a motivação. A vigente Constituição do Estado de São Paulo, no art. 111, insere a motivação entre os princípios da Administração Pública. A execução de uma política pública não se constitui em atos políticos imunes à apreciação judicial, mormente em função dos parâmetros constitucionais e legais que a norteiam. A discricionariedade administrativa está hoje reduzida a uns poucos casos em que a opção do administrador é livre no sentido de prescindir de justificação. Sobretudo no caso das políticas públicas, cujos princípios são fixados preferentemente na Constituição ou, no mínimo, em leis imediatamente infraconstitucionais, a motivação da conduta comissiva ou omissiva da administração pública é exigível, “sujeitando-se ao controle jurisdicional amplo e exauriente, especialmente no tocante à eficiência dos meios empregados e à avaliação dos resultados alcançados”, como asseverou Rodolfo de Camargo Mancuso na sua definição supratranscrita. Pelo que, o juiz não só pode e deve apreciar os motivos, mas até ordenar que o administrador público proceda à motivação do seu ato, se ainda não a fez, sob pena de ser anulado pelo Judiciário por ausência de motivos. Em suma, constitui um indeclinável poder-dever do juiz sindicar os motivos determinantes dos atos administrativos que consubstanciem a formulação e a execução dos programas governamentais enformados pelas políticas públicas.
Esses são alguns parâmetros que podem e devem pautar a atuação do Poder Judiciário em relação às políticas públicas. Essa atuação se faz cada dia mais necessária, em vista da crescente complexidade técnica e operacional dessas políticas, agravada pelos intensos conflitos de interesses nelas envolvidos. Essas condições propiciam desvios que, não raro, requerem e justificam a atuação do Poder Judiciário na ponderação dos interesses em colisão, sobretudo distinguindo o interesse público do mero interesse de governo, a fim de prover a efetiva realização dos direitos sociais e, com eles, das políticas públicas.