Radical, a Revolução Francesa foi além da ordem política. Buscou revolucionar também a ordem das idéias. Nasceu aí um movimento intelectual chamado ideologia. Pretendeu fazer na ordem do pensamento a revolução que se fizera na ordenação do poder político. Visava a criar um mundo científico realmente novo, refazendo – com um novo fundamento racional – todas as ciências, inclusive a moral, a política e o direito. O desiderato era o de abrir uma nova era na história das idéias, digna de crédito, "a era francesa", como a chamou Antoine de Tracy (1754–1833), que para designar esse projeto inventou em 1796 o termo ideologia, composto de "idéia" e "logos", significando "ciência das idéias".
Antoine de Tracy e seus companheiros e simpatizantes eram ditos ideologistas, até que Napoleão Bonaparte, por chacota, em vez de ideologistas, começou a chamar de "ideólogos" os adeptos da ideologia, os quais passaram a criticar acerbamente o regime político napoleônico, depois de o terem apoiado inicialmente. A chacota do Imperador, pela própria força de quem a fazia, causou a degeneração dos termos. Tracy chamava de ideologia uma forma desinteressada de conhecimento – uma verdadeira ciência das idéias – que produziria numerosos proveitos sociais. Mas Napoleão chamou de ideólogos os que – sob a aparência de idéias elaboradas cientificamente – mascaravam interesses políticos que, obviamente, no caso, não eram os seus.
A partir daí, ideólogo veio a ser o contrário de ideologista. Como resultado, o adjetivo ideólogo substituiu ideologista e fez o substantivo ideologia mudar de sentido. Em vez de uma ciência das idéias, passou a designar a movimentação das idéias em função do seu condicionamento político. Napoleão desencadeou um processo de degenerescência do termo ideologia. Logo depois, Marx e Engels, os fundadores do marxismo, ligaram o condicionamento político das idéias à infra-estrutura econômica da sociedade, a fim de denunciarem a ideologia com que a burguesia mascarava seus interesses de classe. Surgiu aí a acepção da ideologia significando o mascaramento dos interesses da classe social dominante por idéias formuladas, ora misticamente, ora racionalmente. Mas, em verdade, embora sempre traduza o condicionamento das idéias pela vivência social do indivíduo que pensa, nem sempre a ideologia é um pensamento-máscara, que visa a esconder ou escamotear a verdade dos fatos em função de interesses sócio-individuais. Nem sempre tem um tal sentido negativo.
A evolução dos estudos da psicologia social fez perceber que não só as classes sociais, mas qualquer corporação ou grupo em qualquer tempo e lugar – e até mesmo os indivíduos por si mesmos – pensam ideologicamente. Todos nós pensamos condicionados por nossa vivência social. Esse condicionamento é natural e, portanto, inevitável. Nós pensamos ideologicamente, sem querer, nem perceber. Ou seja, esse condicionamento não se dá por caso pensado. De fato, até um certo ponto, o pensamento reflete a experiência de vida do seu autor. A ideologia é um fenômeno natural. Não é má, não é boa, mas simplesmente é o que é: um fato natural. Como diz Frederick WATKINS, a ideologia constitui algo que sempre esteve e sempre estará conosco.
Decorre daí a possibilidade e a necessidade de recuperar o termo ideologia, a fim de que – além do significado negativo que herdou de Napoleão e foi acentuado pelo marxismo – readquira o significado positivo, original, em que pode designar uma produção de idéias novas, cientificamente elaboradas, como era intenção de Antoine de Tracy, ao criar o termo. É com esse sentido positivo e renovador que a ideologia do afeto surge e insurge contra a velha e superada ideologia da família patriarcal.
Ainda hoje, uma das ideologias de maior impacto no mundo ocidental é a ideologia da família patriarcal, herdada da cultura romana. Nem sequer o individualismo, a ideologia do indivíduo, irrompendo radical nas revoluções liberais, na passagem da Idade Moderna para a Contemporânea, logrou suplantar a ideologia da família. Para esta, o elemento basilar da sociedade não é o indivíduo, mas sim a entidade familiar monogâmica, parental, patriarcal, patrimonial, isto é, a tradicional família romana, que veio a ser recepcionada pelo cristianismo medieval, que a reduziu à família nuclear, consagrando como família-modelo o pai, a mãe e o filho. Essa concepção restritiva da família bem servia, no plano ideológico, para justificar o domínio das terras pelos patriarcas antigos e, depois, pelos senhores feudais, corroborando a idéia-força de que a família patriarcal e senhorial é a base da sociedade. Ou seja, a sociedade humana não é uma sociedade de indivíduos, nem a sociedade política é uma sociedade de cidadãos, mas sim um agrupamento de famílias. O indivíduo sem a família é pouco mais do que ninguém: um deserdado, um desafortunado, um pobre coitado. Também assim, igualmente, é o cidadão. Veja-se, por exemplo, o instituto do bem de família, cuja proteção somente agora alcança o indivíduo que vive sozinho em seu lar, mas mesmo assim sob a alegação de que ele tem a possibilidade de um dia vir a constituir nesse bem uma família. Aí se nota como a ideologia da família patriarcal ainda se reflete na ordem jurídica. Reflete-se em todo o ordenamento jurídico, a partir da Constituição. Infelizmente, dela não conseguiu escapar o novo Código Civil, que entrará em vigor no dia 10 de janeiro de 2003.
O patriarcalismo nasceu com a fixação definitiva das tribos em terras que passaram a constituir o "seu" território. Assim sobreveio a necessidade de prover e assegurar que o território tribal não escaparia ao domínio da tribo, mas seria transmitido com base no sangue tribal, rigorosamente definido. Daí, o patriarcalismo, que procedeu a essa definição rigorosa.
Com o patriarcalismo principiou a asfixia do afeto. Os patriarcas deram início à prática dos casamentos por conveniência, que com o passar do tempo proliferaram ainda mais, quando se somaram aos motivos patrimoniais os motivos políticos. Nessa evolução histórica, do primitivo casamento afetivo, passou-se ao casamento institucional, com o qual se buscou assegurar o patrimônio, dando origem à ideologia da família parental, patriarcal, senhorial, patrimonial. Esta se define pela existência de um pai e uma mãe com seus filhos sob o poder pátrio, fruindo de um patrimônio familiar, que deve ser mantido como base física e para segurança econômica da família. A família assim concebida e praticada acabou por revestir e mascarar interesses meramente patrimoniais, que muitas vezes deslocam, degeneram, sufocam ou até substituem as relações de afeto.
Essa ideologia tradicional da família – fulcro do direito estampado no Código Civil de 1916 – ainda sobreviveu na definição constitucional da família brasileira. Suas conseqüências estão no artigo 226 da Constituição da República. Por exemplo, à luz dos conceitos contidos nos parágrafos 3o e 4o desse artigo constitucional, a comunidade formada por irmãos sem pais – órfãos que tenham perdido pai e mãe – não é família. O que constitui um absurdo, pois é fato notório que existe um sem-número de famílias assim formadas, nas quais geralmente o irmão mais velho cumpre o papel de pai de família, ou seja, chefe de família, exercendo de fato o antigo pátrio poder, atualmente dito poder familiar. Em entidades tais, estão conjugadas pessoas que funcionam – atuam e vivem – como família e que, realmente, são cônjuges, porque conjugam de forma familiar as suas vidas. Pergunta-se: o que se diz quando se diz cônjuges?
Cônjuges são, como o próprio nome diz, os que se sentem conjugados por uma origem ou destino de vida em comum. Nessa conjugação de vidas, atua o afeto. O que define a família é uma espécie de afeto que – enquanto existe – conjuga intimamente duas ou mais pessoas para uma vida em comum. É o afeto que define a entidade familiar. Mas não um afeto qualquer. Se fosse qualquer afeto, uma simples amizade seria família, ainda que sem convívio. O conceito de família seria estendido com inadmissível elasticidade.
Na realidade, o que identifica a família é um afeto especial, com o qual se constitui a diferença específica que define a entidade familiar. É o sentimento entre duas ou mais pessoas que se afeiçoam pelo convívio diuturno, em virtude de uma origem comum ou em razão de um destino comum, que conjuga suas vidas tão intimamente, que as torna cônjuges quanto aos meios e aos fins de sua afeição, até mesmo gerando efeitos patrimoniais, seja de patrimônio moral, seja de patrimônio econômico. Este é o afeto que define a família: é o afeto conjugal. Mais conveniente seria chamá-lo afeto familiar, uma vez que está arraigada nas línguas neolatinas a significação que, desde o latim, restringe o termo cônjuge ao binômio marido e mulher, impedindo ou desaconselhando estendê-lo para além disso. Mas, embora o afeto conjugal entre marido e mulher seja a espécie mais relevante, não é a única espécie de afeto familiar.
É óbvio que está em curso na história atual do Ocidente a superação histórica do patriarcalismo, à qual se segue a superação do parentalismo. Essa evolução implicará – e de certa forma já está implicando – a ampliação do conceito de cônjuge para além do binômio marido e mulher. Hoje é evidente que, para haver família, não é preciso haver homem e mulher, pai e mãe, cônjuges em sentido restrito. Mas basta haver cônjuges em sentido amplo, na mais lídima acepção etimológica desse termo, a saber: pessoas conjugando suas vidas intimamente, por um afeto que as enlaça especialmente, quanto aos fins e aos meios de vivência, convivência e sobrevivência. Para alguns, ainda parece ser inconveniente usar o termo cônjuge em sua compreensão etimológica pura, apegando-lhe um sentido amplo, para incluir quaisquer pessoas que conjuguem suas vidas nesses termos. Isso estenderia o termo para além do binômio tradicional: homem e mulher. Contudo, já não é mais possível deixar de definir a família por essa conjugação de vidas independentemente do sexo e da procriação; e essa definição pode ser feita sem usar o termo cônjuge, empregando-se a expressão afeto familiar para designar a diferença específica que define a família, ou seja: um afeto que enlaça e comunica as pessoas, mesmo quando estejam distantes no tempo e no espaço, por uma solidariedade íntima e fundamental de suas vidas – de vivência, convivência e sobrevivência – quanto aos fins e meios de existência, subsistência e persistência de cada um e do todo que formam.
O afeto é que conjuga. Apesar da ideologia da família parental de origem patriarcal pensar o contrário, o fato é que não é requisito indispensável para haver família que haja homem e mulher, nem pai e mãe. Há famílias só de homens ou só de mulheres, como também sem pai ou mãe. Ideologicamente, a atual Constituição brasileira, mesmo superando o patriarcalismo, ainda exige o parentalismo: o biparentalismo ou o monoparentalismo. Porém, no mundo dos fatos, uma entidade familiar forma-se por um afeto tal – tão forte e estreito, tão nítido e persistente – que hoje independe do sexo e até das relações sexuais, ainda que na origem histórica não tenha sido assim. Ao mundo atual, tão absurdo é negar que, mortos os pais, continua existindo entre os irmãos o afeto que define a família, quão absurdo seria exigir a prática de relações sexuais como condição sine qua non para existir a família. Portanto, é preciso corrigir ou, dizendo com eufemismo, atualizar o texto da Constituição brasileira vigente, começando por excluir do conceito de entidade familiar o parentalismo: a exigência de existir um dos pais.
O pior é que a ideologia da família patriarcal converteu-se em ideologia do Estado, levando-o a invadir a liberdade individual, para impor condições que constrangem as relações de afeto. Por exemplo, impondo um prazo de separação prévia ao divórcio, na tentativa de salvar um casamento oficial já falido, ao passo que para oficializar o casamento não exige preparação alguma, apesar da gravidade do ato.
Outro exemplo é a união estável, que redunda numa violência contra a liberdade individual, na medida em que resulta num casamento por decurso de prazo ou casamento ex officio. Preocupada com os efeitos patrimoniais, a legislação infraconstitucional – Lei n. 9.278, de 10 de maio de 1996 – fez da união estável um contrato de adesão tácita, gerador de obrigações patrimoniais, sucessórias e alimentícias, independentemente da vontade das partes, com base em presunções impostas pelo Estado. Dessas presunções, não escapa ninguém que tenha vivido uma relação de amor espontânea, com alguma durabilidade e convivência. Mesmo que ambos nada mais tenham querido senão viver essa relação, como a mais pura união de afeto, e nenhum dos dois postule ao juiz estatal declará-la união estável, mesmo assim não está afastada a hipótese de terceiros postularem o reconhecimento da união estável, com o fito de satisfazer créditos devidos por inadimplência de um dos conviventes. Assim, no Brasil de hoje, conviver uma união de afeto pode implicar, como resultado, acabar casado por decurso de prazo.
Eis alguns exemplos de como a ideologia da família patriarcal, senhorial e patrimonial, reflui do passado e influi no presente para deturpar o reflexo na lei das condições reais em que se travam as relações sociais de afeto. No caso da união estável, certamente a mulher é a parte mais fraca. Deve ser protegida, sem dúvida. Mas o Direito, a título de cumprir sua função social de proteger a parte ou categoria mais fraca nas relações básicas da sociedade, não deve chegar ao extremo de estabelecer um casamento ou uma família ex officio, decorrente de mera presunção legal. Como também é inútil forçar a manutenção de um casamento falido, impondo prazo de carência para a obtenção do divórcio. Em casos tais como esses, nada adianta sobrepor-se a lei ao afeto, tentando forçar a consumação ou a existência do casamento. Isso apenas gera um efeito contrário: separa, em vez de unir.
Em conclusão: é preciso que uma nova ideologia, presa à realidade social presente – e, por isso, positiva – substitua a velha ideologia herdada dos patriarcas antigos e dos senhores medievais. No jogo histórico das ideologias, inevitável na evolução da humanidade, sempre uma nova ideologia surge de uma outra à qual supera no sentido do progresso da sociedade geral dos seres humanos. Nesse sentido, olhando para o presente e para o futuro, deve a ideologia do afeto, que é a positiva, substituir a velha ideologia da família patriarcal, parental, patrimonial. Esta há muito tempo se tornou ideologia negativa, desde que e na medida em que passou a negar, esconder e mascarar a realidade da vida social.
WATKINS, Frederick M. A idade da ideologia: o pensamento político, de 1750 até o presente. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1966. p. 9. O termo afeto vem do latim ad (= para) e fectum (= feito), significando “feito um para o outro”. BARROS, Sérgio Resende de. Matrimônio e patrimônio. in Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre: Síntese, IBDFam, v. 1, n. 1, abr./jun., 1999. p. 11.